Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 27 de abril de 2013

cais (bem pode rimar com paz)

Emily Dickinson

Tão plausível se torna
Um Sonho acalentado
Que o real para mim já é fictício –
A ficção – é real –

Que Visão suntuosa –
Que riqueza – seria –
Tivesse minha Vida sido um Erro
Corrigido – por Ti


The Vision pondered long
So plausible becomes
That I esteem the Fiction
real
The Real
fictitious seems

How bountiful the Dream

What Plenty
it would be
Had all my Life but been Mistake
Just rectified
in Thee

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.200-201.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Álvaro de Campos, sempre

[...]
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?

Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.477.

Paulo Leminski

HIERÓGLIFO

Todas as coisas estão aí
para nos iluminar.
Discípulo pronto,
o mestre aparece
imediatamente,
sob a forma de bicho,
sob a sombra de hino,
sob o vulgo de gente
como num livro, devagar.

Mestre presente,
a gente costuma hesitar,
nem se sabe se o bicho sente
o que sente a gente
quando para de pensar.

Paulo Leminski. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.339.

Richie Havens (1941-2013)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Cecília Meireles (pela passagem do 21 de abril)

Romance LI ou Das sentenças

Já vem o peso do mundo
com suas fortes sentenças.
Sobre a mentira e a verdade
desabam as mesmas penas.
Apodrecem nas masmorras,
juntas, a culpa e a inocência.
O mar grosso irá levando,
para que ao longe se esqueçam,
as razões dos infelizes,
a franja das suas queixas,
o vestígio dos seus rastros,
a sua inútil presença.

Já vem o peso da morte,
com seus rubros cadafalsos,
com suas cordas potentes,
com seus sinistros machados,
com seus postes infamantes
para os corpos em pedaços;
já vem a Jurisprudência
interpretar cada caso,
− e o Reino está muito longe,
− e há muito ouro no cascalho,
− e a Justiça é mais severa
com os homens mais desarmados.

Já vem o peso da usura,
bem calculado e medido.
Vice-reis, governadores,
chanceleres e ministros,
por serem tão bons vassalos,
não pensam mais nos amigos:
mas há muita barra de ouro,
secretamente, a caminho;
mas há pedras, mas há gado
prestando tanto serviço
que os culpados com dinheiro
sempre escapam aos castigos.

Já vem o peso da vida,
já vem o peso do tempo:
pergunta pelos culpados
que não passarão tormentos,
e pelos nomes ocultos
dos que nunca foram presos.
Diante do sangue da forca
e dos barcos do desterro,
julga os donos da Justiça,
suas balanças e preços.
E contra seus crimes lavra
a sentença do desprezo.

Cecília Meireles. Romanceiro da Inconfidência. 9.ed. São Paulo: Global, 2012, p.147-148.

movimentando-se em terreno resvaloso

Num espaço de tempo relativamente curto aconteceram tantas coisas — coisas em demasia, excedendo o limite do narrável, do que se consegue dizer — que mesmo o fio com a palavra pareceu se perder, e o silêncio tornou-se uma necessidade.  É ingênuo supor que a experiência não nos ultrapassa. E nisso a palavra, essa estranha forma de respiração, dobra-se diante do vivido, vivido que quer render a linguagem de outra forma, para que nela possam caber pombos, experiências inusitadas, canções, imagens oníricas, poemas. “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel” — diz o narrador do conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa. Em tão ilustre companhia vai-se longe na aventura da linguagem, quer-se navegar mares impetuosos, oceanos de sentidos velados. O que pode um corpo? O que pode o amor à linguagem, o desejo de criar através dela? "Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer". (Graciliano Ramos, Memórias do cárcere)