Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 23 de fevereiro de 2013

e agora o antídoto...

Mário Quintana (a falsa verdade desses versos não esconde o pertencimento do poeta, num sutil jogo de contrastes)

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...

Mário Quintana. Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.193.

um pouco de veneno para o sábado à noite

garrafas ao mar: a víbora manda lembranças

Enquanto assistia ao documentário sobre Joel Silveira, lembrei-me de uma crônica dele lida já faz tempo ― e a memória, seletiva, guardou resquícios desta e mais duas ou três ― em que ele relatava estar andando sozinho num frio dezembro europeu (não me recordo a cidade, e talvez seja só minha a impressão de que era Natal) e deparou-se, de repente, num vitrine de livraria, com um livro da Clarice Lispector ― creio que Perto do coração selvagem, se a memória estiver me ajudando ―, e então ele sentiu seu coração subitamente aquecido, por aquele encontro, por encontrar alguém familiar na fria distância em que se encontrava, por encontrar uma garrafa lançada ao mar. Escrever é imperioso ― este é o maior testemunho que ficou da brilhante geração modernista de cronistas e repórteres brasileiros, porque a literatura era uma espécie de morada, parada obrigatória deles e delas.

belíssima performance do grupo tuttaméia com a participação de milton nascimento

Emmanuel (Michel Colombier e Murilo Antunes)

Viola Enluarada (Marcos e Paulo Sérgio Valle)

Marcos Valle e Milton Nascimento (aqui a curiosa história desta canção, em que se pode perceber um sutil teor de contestação ao momento político de então)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Mário Quintana: "Andam por tudo signos diversos / Impossíveis da gente decifrar"

Vontade de escrever quatorze versos...
Pobre do Poeta!... É só pra disfarçar...
Andam por tudo signos diversos
Impossíveis da gente decifrar.

Quem sabe lá que estranhos universos
Que navios começaram a afundar...
Olha! os meus dedos, no nevoeiro imersos,
Diluíram-se... Escusado navegar!

Busca perdida que não sabe o porto,
Carregada de cântaros vazios...
Oh! dá-me a tua mão, Amigo Morto!

Que procuravas, solitário e triste?
Vamos andando entre os nevoeiros frios...
Vamos andando... Nada mais existe!...

Mário Quintana. Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.210. 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

a feminina voz do cantor

Fernando Pessoa

Ninguém me disse quem eu era, e eu
A ninguém perguntei.
Vi-me vivendo sob um vasto céu
E senti uma lei.

A informe natureza, desdobrada
Em terra e rio e mar,
Deu-me um indício, como que uma estrada
Para eu caminhar.

Mas o caminho era para quem sou,
E tinha por seu fim
O saber que o caminho por que vou
Está dentro de mim.

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.327.

antes era perfeito

Ontem, depois da consulta ao bem-humorado médico ― não adianta, é inútil ―, e também porque ela havia sido assunto na sessão de análise: “Ter nascido me estragou a saúde.” (Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.408).

vida

Missão comprida.
Missão cumprida?

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

outro grande momento do dvd Pietá (canção de lô e márcio borges)

deus hipotético (por luis fernando verissimo)


Na crônica de Luis Fernando Verissimo publicada pelo O Globo no último domingo, “Deus hipotético”, além da coragem e humor habituais, chama atenção o trecho: “Há aquela parábola do Dostoievski sobre o encontro do Grande Inquisidor com Jesus Cristo, que volta à Terra ― o filho da hipótese tornado homem ― para salvar a humanidade outra vez, já que da primeira vez não deu certo. Os dois conversam na cela onde Cristo foi metido por estar perturbando a ordem pública, e o Grande Inquisidor não demora a perceber que a pregação do homem ameaçará, antes de mais nada, a própria Igreja, a religião institucionalizada e os privilégios do poder.” Uma ideia perversa e atravessou o pensamento: se a ficção não seria também de um cristianismo genuíno, ou seja, era uma vez um homem, dito filho de Deus, que tentou pregar a justiça social, mas isso não deu muito certo, e este homem acabou morto, e então é até possível lutar contra um mundo socialmente injusto, mas trata-se de uma luta vã... Verissimo não citou Dostoievski em vão.

sobre os mortos

Durante um dos passeios em Paraty, o guia explicou que a praça principal da cidade foi construída sobre um cemitério desativado. Então ele passou a explicar que nem todos os mortos foram transferidos para o novo cemitério, restando ali, sob solo frequentado por ávidos vivos. Os guias, mesmo quando pensar estar divertindo, acabam contando a história da cidade, marcada por inúmeras segregações.
atual cemitério da cidade

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

companhia de viagem (a extrema precisão de um poema)

CANÇÃO DE VIDRO

E nada vibrou...
Não se ouviu nada...
Nada...

Mas o cristal nunca mais deu o mesmo som.

Cala, amigo...
Cuidado, amiga...
Uma palavra só
Pode tudo perder para sempre...

E é tão puro o silêncio agora!

Mário Quintana. Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.20. 

decantando um passeio... "com sol e chuva você sonhava"