Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 12 de maio de 2012

poesia: feroz franqueza (um esplêndido poema de José Régio)

REDENÇÃO

Meus poemas desprezaram a Beleza...
Fi-los descendo e transcendendo lodos.
(Dos lodos todos e dos poemas todos
Aqui vos falo com feroz franqueza!)

Fi-los, sentando à minha impura mesa
Quantos pecaram, por qualquer dos modos
Que há, de pecar, entre judeus ou godos...
E assim os fiz mais belos que a Beleza.

Tenho as mãos negras e os sorrisos curvos
Dos que, na sombra, beijam as raízes
Do que parece claro à luz de fora.

Vinde aos espelhos dos meus olhos turvos!
Se sois infames, fracos, e infelizes,
Neles vereis como já nasce a aurora.

José Régio: Antologia. Seleção Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.86.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

nada em minha alma

“Nada pela minha alma um peixe abissal” (Alexei Bueno). E este peixe, porque abissal, encerra velado as cores com que já sonhei. Neste peixe eu respiro, enquanto me movimento pela água-linguagem. Somente um peixe abissal para trazer à tona o que a linguagem esconde de mim.

confiança

O bem não vem com prazo de validade.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Orides Fontela

NOTÍCIA

Não mais sabemos do barco
mas há sempre um náufrago:
um que sobrevive
ao barco e a si mesmo
para talhar na rocha
a solidão.

FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.41.

resposta sofisticada

"É apenas meu cérebro tentando me salvar de um tigre." 
Scientific American Brasil, n.120, p.51.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Orides Fontela

ESTRELA

Sobre a paisagem um ponto
de luz cósmica completa
e cena fixa
que não a encerra.

A estrela completa
a unidade em que
não habita.

FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.67.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

oração

Depois de muito tempo, senti hoje vontade de rezar ― uma forma de já estar rezando. Desejo, de algum modo, de proteção que não fosse a que eu mesma constituo em meu ser. Rezar bem pode ser um desdobramento dessa proteção  sentir-se amparado pela espiritualidade, pelo bem que se traz em si. E é claro, para mim, que a literatura desde sempre foi um sucedâneo da religião, embora eu não seja uma ovelha exemplar. Importa o sentimento do sagrado, tênue, que mesmo as palavras deixam escapar...

verso de hoje

"A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos." A.C.

I Am Not Who You Want

João Cabral de Melo Neto

HOMENAGEM RENOVADA A MARIANNE MOORE

Cruzando desertos de frio
que a pouca poesia não ousa,
chegou ao extremo da poesia
quem caminhou, no verso, em prosa.
E então mostrou, sem pregação,
com a razão de sua obra pouca,
que a poesia não é de dentro,
que é como casa, que é de fora;
que embora se viva de dentro
se há de construir, que é uma coisa
que quem faz faz para fazer-se
― muleta para a perna coxa.

MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.250. 

domingo, 6 de maio de 2012

uma batida forte

relendo grande sertão: veredas (XXI)

“E grande aviso, naquele dia, eu tinha recebido; mas menos do que ouvi, real, do que eu tinha de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu acho que, quase toda vez que ele vem, não é para se evitar o castigo, mas só para se ter consolo legal, depois que o castigo passou e veio. Aviso? Rompe, ferro!”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.194-195.

relendo grande sertão: veredas (XX)

“Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensante. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.194.