Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 4 de fevereiro de 2012

era já de madrugada / e eu acordei sem razão...

Acordar no meio do sobressalto da noite. Erguer-se em susto pelo inesperado do sono interrompido. Onde a calma para dormir de novo? Há que se buscá-la, encontrá-la, extraí-la da noite se for preciso. Então abro a varanda e sinto soprar uma brisa leve, suave e silenciosa, tão diferente do calor que fazia quando cheguei por volta das dez em casa. Me recosto na brisa como se fosse no próprio travesseiro, mas não é suficiente, então tomo na madrugada uma ducha fria que traz frescor imenso ao corpo, essa substância rebelde. Volto à varanda, desligo o ar condicionado e deixo aquele frescor da madrugada adentrar a casa. Mas é preciso voltar a dormir. Penso em escrever sobre a brisa como uma forma de reaver o sono. O que vale mais? A brisa em sua irredutibilidade ou sua materialização nas palavras? Resolvo dormir e deixar a escrita para depois, ficando com a pureza daquele momento silencioso da madrugada, em que distingui o porteiro do edifício, em quase silêncio e perfeita solidão, molhando as plantas do jardim. Era tarde, apaguei a luz da varanda e fui dormir, ouvindo ao fundo a água que caía sobre meu sono.

saudade dos smiths... saudade de um tempo mais ingênuo

Manuel António Pina

... em gentil oferta da Helena
[À beira do princípio]

À beira do princípio, do precipício,
o Anjo do Conhecimento cega
para poder ver o início
da sua queda caótica.

Aquilo que o Visionário vê é o que
o vê a ele do alto do Futuro
para onde cai com o conhecimento obscuro de
saber que está no sítio para onde vai.

(O que regressa ao sítio de onde nunca saiu
é o mesmo que nunca lá esteve,
o que sobe a escada e transpõe a porta
que dá para toda a parte).

Manuel António Pina. Poesia, saudade da prosa: uma antologia pessoal. Lisboa, Assírio & Alvim, 2011, p.70. 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

do conto “Preciosidade”

uma frase enigmática de Clarice Lispector:
                              “Ela fazia mais sombra do que existia.”

escrita

As pistas aparecem na fala, na escrita, nos gestos, na às vezes imperceptível teia envolvendo escrita e vida. Uma vez desveladas, fica a dúvida: serão mesmo signos de algo que descortinam ou apenas efeito da sugestão, construção dada a posteriori? Como algo em princípio absolutamente casual e inocente pode ser tomado como parte de um todo que escapa? As pistas só o são se tomadas como tais. Seriam qualquer coisa insignificante de outro modo ― o que o arco da percepção pode alcançar? A suprema libertação é poder escrever sobre coisas tão sutis e vagas como a poeira da tarde, que escapa mal se tenta tocá-la com palavras.

literatura e justiça - um depoimento de Clarice Lispector

“Hoje, de repente, como num verdadeiro achado, minha tolerância para os outros sobrou um pouco para mim também (por quanto tempo?). Aproveitei a crista da onda, para me por em dia com o perdão. Por exemplo, minha tolerância em relação a mim, como pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me aproximar de um modo ‘literário’ (isto é, transformado na veemência as arte) da ‘coisa social’. Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir ‘arte’, senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu queria era ‘fazer’ alguma coisa, como se escrever não fosse fazer. O que não consigo é usar escrever para isso, por mais que a incapacidade me doa e me humilhe. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele ― e, sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar. O sentimento de justiça nunca foi procura para mim, nunca chegou a ser descoberta, e o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos. Tenho consciência de estar simplificando primariamente o problema. Mas, por tolerância hoje para comigo, não estou me envergonhando totalmente de não contribuir para nada humano e social por meio do escrever. É que não se trata de querer, é questão de não poder. Do que me envergonho, sim, é de não ‘fazer’, de não contribuir com ações. (Se bem que a luta pela justiça leva à política, e eu ignorantemente me perderia nos meandros dela.) Disso me envergonharei sempre. E nem sequer pretendo me penitenciar. Não quero, por meios indiretos e escusos, conseguir de mim a minha absolvição. Disso quero continuar envergonhada. Mas, de escrever o que escrevo, não me envergonho: sinto que, se eu me envergonhasse, estaria pecando por orgulho.”

Os melhores contos de Clarice Lispector. 3.ed. São Paulo: Global, 2001, p.123-124. 

começar o dia com música

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

o luar através dos altos ramos

domingos martins-es, 26/01/2012

e a curva dos lábios manteve a inocência...

Diante de enfrentamentos recentes, desejei com ternura ter de novo a oportunidade da inocência. Mas para isso seria preciso renascer ― ou acreditar em metempsicose. A não ser que fosse possível renascer neste corpo. Por acaso, ouço agora o trecho da fala de José Miguel Wisnik que focaliza a tópica do espelho (ou do narcisismo) em Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Trata-se do seguinte fragmento de Clarice:

A SURPRESA
Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência.
Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figurar exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo.

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.23.

clarice lispector por josé miguel wisnik

Dora Ferreira da Silva

VIDA

Às vezes paro
outras cultivo o jardim:
a mão escolhe ou esquece
mas o espinho sempre fere
as palmas vulneráveis.
Esqueço o nome das flores
   das ruas
(lembrando seu perfil preciso)
e varro de manhã as folhas secas.
Amo os livros e a eles me dou
no banco sob a árvore: para sempre
lembrança de vida e vozes nos canteiros.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.166.

ruídos, brados, rumores

Ontem um morador do edifício vizinho esbravejava seu direito de não viver entre hipócritas. Estava alterado, falava alto o bastante para ser ouvido para além dos interlocutores imediatos. Curiosa explosão: não querer mais viver entre hipócritas. 

desmundo

Reparei com atenção na vinheta da mulata globeleza, corpo coberto apenas com maquiagem em pontos estratégicos. Uma mulher nua vestida apenas com a fantasia da maquiagem, despindo quantas outras fantasias se desejar, um nu camuflado, camuflagem às avessas, já que esta pressupõe esconder e não mostrar, uma camuflagem que esconde o que todos estão vendo, como a querer driblar a personagem infantil de conhecida história: “O rei está nu”. Enquanto assistia pensei no forte apelo sexual que certa imagem brasileira não declina de vender, a par de outros produtos, no mesmo pacote turístico. Hoje leio uma reportagem sobre o tráfico de mulheres na Europa, sendo o Brasil um dos principais fornecedores. Basta assistir Desmundo, protagonizado por Simone Spoladore e Osmar Prado e falado em português arcaico, com legendas. Para casar, a valer, os primeiros portugueses mandaram vir moças da Europa, deixadas em orfanatos e educadas para tal.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

liberdade condicional

“Não sobrava nada além de uma tola liberdade condicional, a piada de se viver como uma palavra entre parênteses, divorciada da frase principal e da qual, no entanto, é quase sempre sustentação e explicação.”

Julio Cortázar, “Cartas de mamãe” (As armas secretas, p.10).

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

verbo riscado

Tentar entender a matéria dos sonhos, matéria bruta, oca, informe, estranha, como se fosse o negativo de uma fotografia que jamais será revelada. Sonhos inquietantes por esses dias, alguns com elevada carga simbólica ― o que fazer com signos que insistem em se materializar durante o sono? 

inútil escrita

Mas vou continuar escrevendo, escrevendo e escrevendo, mesmo sem ter nada a dizer; o que importa é que a mim tenho coisas a dizer, sempre, e nisso vou dizendo, desentranhando, aceitando a vida que vive em mim.

dolce far niente

Ser insignificante tem suas vantagens. Por exemplo: imaginar que neste momento ninguém que me conhece se ocupa de mim em sua lembrança. Por que não? Somos protagonistas apenas para nós mesmos. É um dolce far niente sentir-se alheio ao turbilhão da existência. Algo que definiria como ostracismo na corrente dos afetos. Mas não é só isso. É querer passar pela existência sem fazer alarde, podendo livremente escrever quando sentir vontade.

a idade do céu

astrônomos mais próximos de buraco negro

reportagem aqui

as armas secretas

As armas secretas, de Julio Cortázar, é simplesmente imperdível, sendo mesmo difícil escolher dentre os cinco contos o melhor ― todos primam pela excelência. Depois de assistir a Blow up, “As babas do diabo” ganha uma densidade imagética única, sem contar que se trata de um pequeno tratado sobre o olhar. “O perseguidor” é implacável e “Cartas de mamãe” é magistral, talvez pela coincidência de tê-lo lido durante uma viagem. Um pequeno senão à tradução (ou quem sabe à revisão): não obstante os elogios, há problemas que, mais uma vez, fazem lembrar como a pressa editorial compromete a qualidade de um trabalho que deveria primar por aquilo que persegue: o cuidado com o que Johnny tenta lembrar a Bruno, seu biógrafo, o tempo todo, e que felizmente não escapa ao narrador-perseguidor, colado a Bruno: "― Não se pode dizer nada, que imediatamente você traduz para o seu idioma sujo. Se quando eu toco você vê os anjos, a culpa não é minha. E o pior, o que você verdadeiramente esqueceu de dizer no livro, Bruno, é que eu não valho nada, que o que eu toco e as pessoas aplaudem não vale nada, realmente não vale nada." (p.147). 

CORTÁZAR, Julio. As armas secretas. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Mais detalhes no blog meia palavra.

domingo, 29 de janeiro de 2012

fotografia

“Entre as muitas maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias, atividade que deveria ser ensinada desde muito cedo às crianças, pois exige disciplina, educação estética, bom olho e dedos seguros (...) quando se anda com a câmara tem-se o dever de estar atento, de não perder este brusco e delicioso rebote de um raio de sol numa velha pedra, ou a carreira, tranças ao vento, de uma menininha que volta com um pão ou uma garrafa de leite.”

CORTÁZAR, Julio. As babas do diabo.___. As armas secretas. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.72.

Jorge de Lima: Livro de Sonetos

E que grande paz neste oceano de hoje.
Que íris, que amizade continente.
Entre nereida e anêmona não se ouve
a linguagem que afasta gente de gente.

Entre quem dorme aqui e no outro pólo houve
uma comunidade permanente.
Os contemplados e serenos rostos
olham-se com um olhar preexistente.

Um candelabro em pêndulo constante
ritma a sina dos cabos bojadores.
E são âncoras na água em maré cheia,

e são bússolas de um igual instante
marcando calmarias e torpores,
e marujos parados de alma alheia.


Jorge de Lima. Poemas negros. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.188.

nau literária

E então me desvencilho de camadas meramente adiposas, e desvelo, em barquinho movido a vela, um respirar mais manso.