Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 25 de junho de 2011

Maíra, Darcy Ribeiro (Record, 2007)

Maíra é obra densa, difícil, com uma narrativa espraiada (ou dispersa) em vários pontos de vista, que precisa ser lida, pelo menos por quem deseja conhecer outros lados de nossa formação como povo, o lado que malogrou: “Ai vida que esvai distraída, entre os dedos da hora, tirando da mão até a memória do tato dos meus idos. Só persistimos, se tanto, na usura da memória alheia, à véspera do longo esquecimento.” (p.207) Disponível na Cultura.

Grateful Dead: Visions of Johanna (Bob Dylan)

[versão de Bob Dylan]

pechincha-rj (imediações do castelo do vinho)

   
  

centro da cidade (igrejas e suas torres)

 
 
 
  

meu amigo Luciano e sua frase lapidar

"É o que tem pra hoje!"

Emily Dickinson: There is a word / Which bears a sword

Uma palavra se abre
Como um sabre ―
Pode ferir homens armados
Com sílabas de farpa
Depois se cala ―
Mas onde ela caiu
Quem se salvou dirá
No dia do desfile
Que algum Irmão de armas
Parou de respirar.

Aonde vá o sol sem ar ―
Por onde vague o dia ―
Lá está esse assalto mudo ―
Lá, a sua vitória!
Observa o atirador arguto!
O tiro mais perfeito!
O alvo do Tempo
O mais sublime
É um ser “ignoto!”

*
There is a word
Which bears a sword
Can pierce an armed man ―
It hurls its barbed syllables, 
At once is mute again ―
But where it fell
The saved will tell
On patriotic day,
Some epauletted brother
Gave his breath away.

Wherever runs the breathless sun ―
Wherever roams the day ―
There is its noiseless onset ―
There is its victory!
Behold the keenest marksman!
Time's sublimest target
Is a soul "forgot"! 

DICKINSON, Emily. Não sou ninguém: poemas. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p. 20-21.

trecho de conversa: geografia

Sonhei com você dia desses. Deu saudades.
Abraço forte ― aguenta daí, que aguento daqui e logo nos falamos.

Ney Matogrosso: O Último Dia

Essa música do Paulinho Moska eu não me esqueço, embora não a tenha escutado tanto. Mas ouvi.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

agora eu: trecho de conversa

“Perdi algumas pessoas, e você bem me conhece, eu não sou de ir atrás: se a pessoa quer ir, eu já estou virando a esquina. E a idade me trouxe certa incompetência para me relacionar com a imaturidade.”

Torquato Neto: fragmentos

e eu estou escrevendo porque é a única coisa que posso fazer agora e porque me apraz. estou muito cansado e não tenho nenhuma pergunta a fazer nem tenho uma única resposta diferente. flávio ouviu no rádio e ana me contou que no brasil o presidente está paralítico, o vice-presidente não assumiu e uma junta militar tomou a presidência. mas é provisório, torquato neto. e eles vão qualquer dia arrumar outra solução, brasileira, mulata e sentimental.

paris, 1969

NETO, Torquato. Torquatália {do lado de dentro}. Org. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.297.

Renato Russo

Afastei-me bastante de letras de música. Mas Renato Russo resiste. Era sofisticado. Um dia, comentando acerca com um amigo, na confusão típica das conversas que tínhamos, ele disse que gostava deste verso, "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã", o sentido era bíblico. E é. Na mesma exatidão com que sou incapaz desse tipo de amor, amar como se não houvesse amanhã. Pelo menos até onde sei. Não alcancei tanto desprendimento.

Legião Urbana: Metal Contra as Nuvens

Sem mais, Renato Russo: "Estes são dias desleais"

Luiz Alberto Oliveira: o nome da rosa

Passei a ter outros olhos para a questão da vastidão cósmica, e portanto do nosso nada, ou pouco mais que nada, como quer uma amiga, depois de assistir a uma conferência do físico Luiz Alberto Oliveira, de longe a conferência mais interessante a que já assisti. O que ele disse de especial? Tudo que alguém precisa saber para saber que é ninguém, ou melhor, que ninguém é melhor (ou pior) que ninguém. Encerrou com um texto de Jorge Luis Borges. Numa entrevista, à pergunta sobre como dialogam as ciências humanas, a biologia e a física na atualidade, respondeu que como viajantes noturnos no deserto, que passam bem ao lado um do outro sem se encontrar, o que só pode dar Borges, como quis Umberto Eco para O nome da rosa (assim as dívidas se pagam). Borges  e seus desertos labirínticos, ou labirintos desérticos. Aqui a súmula da conferência.

a banalidade do mal

Numa aula para o 6º ano, a frase banal “disse ele com malícia” levou um aluno a ler (enxergar) milícia em vez de malícia. Trabalho na zona oeste, região fortemente dominada por milícias, estranhas organizações que ocuparam as brechas deixadas pelo Estado, que aliás nunca se importou mesmo com elas, inclusive deixando-as escandalosamente se alargarem, até o momento em que se viu desafiado. Um século de descaso, desde a belle époque, ia acabar mesmo nisso. Então, ao modo do filme de Victor Erice, O espírito da colmeia, na linguagem vão se desenhando os contornos daquilo que vai aos poucos se entranhando no cotidiano das pessoas, imperceptivelmente. E no cotidiano a linguagem vai desenhando novas cartografias.

C A I S (Milton Nascimento e Elis)


Em Os sonhos não envelhecem, é possível perceber a diferença sutil entre Fernando Brant e Ronaldo Bastos, os dois letristas mais assíduos nas composições de Milton Nascimento.

A T R A V É S

Temporariamente, deixarei de exibir na barra lateral deste espaço os blogs que acompanho (manterei, em forma de banners, dois ou três espaços afins). Naturalmente que estou ciente da contrapartida: deixarei de figurar na lista de espaços que frequento e costumam frequentar este. Mas não se trata disso. Uma casa tem portas e janelas, e eu estou precisando abrir um pouco as janelas por aqui, já que a porta é perigoso. Para alguém que nunca apreciou a simbologia dos vínculos, de repente esse rol de blogs começou a representar entraves ao que este espaço sempre buscou, desde o início. Faz já um tempo que venho meditando nisso, no meu desejo de liberdade, e o Cortázar, nesse sentido, é antídoto e veneno ao mesmo tempo (As vidas que terminam como os artigos literários de jornais e revistas etc.). Também Cildo Meireles e sua poderosa instalação Através (já pisei naqueles cacos de vidro). O mar anda muito revoltoso.

Galeria Cildo Meireles (Inhotim-MG)

recados do sertão

De minha assombrosa experiência em Goiás,  em torno de um feriado de 02 de novembro ― o que tornou tudo mais insólito, pois senti morte e vida intensamente próximas ―, em que passei mal longe de casa, de tudo, ficou-me a lembrança do médico, de suas palavras, experiência que, para não perder, já que ela sempre me chega numa nebulosa, tentei registrar em dois posts, os recados do sertão (aqui e aqui). Eu não só não esqueço o que vivi como a lembrança assídua dessa turbulência (para mal de meus pecados e do meu medo de avião) diz de outras, recentes. Então ele disse algo assim: na travessia de um rio, quando as águas se agitam muito, o melhor a fazer é buscar um modo melhor de respirar, que as próprias águas vão se encarregar de conduzir a uma margem mais tranquila. Que a profissão daquele estranho ser seja a medicina (e que Guimarães Rosa tenha sido médico antes de se fazer diplomata e escritor) me traz um estranho conforto, de que eu tenho os recursos, estão à minha mão.

Nijinsky 1912 (curta)

motivos

De vez em quando volto (ou me lembro, o que dá mesmo) ao primeiro post deste blog, carta de intenções em forma de bilhete sumário a (me) dizer o que vim fazer aqui. Nunca o perco de vista. 

Paulo Mendes Campos: Sombra

[imagem obtida aqui]

Sombra, explicava Emília, não sei se para tranquilizar o marquês ou o visconde, é ar preto.
Criança, não me tranquilizei: do escuro só podiam surgir fantasmas, apagar a lâmpada era dar uma oportunidade aos duendes e demônios do quarto. Só a luz possuía o dom confortante de tocar deste mundo os habitantes do outro.
No ginásio, estudante de Física, não me tranquilizei. Sombra é o resultado da interposição de um corpo opaco entre o observador e o corpo luminoso?
Não nasce de definições a tranquilidade. A qualquer hora, há muita sombra em nós, sinal de que muitos corpos luminosos deixam de banhar-nos com a sua luz desejável, sinal de que nos faltam felicidades, de que muitos sóis necessários se interromperam em sua viagem até nossos olhos.
Não perguntar o que um homem possui mas o que lhe falta. Isto é sombra. Não indagar de seus sentimentos mas saber o que ele não teve a ocasião de sentir. Sombra. Não importar com o que ele viveu mas prestar atenção à vida que não chegou até ele, que se interrompeu de encontro a circunstâncias invisíveis, imprevisíveis. A vida é um ofício de luz e trevas. Enquadrá-lo em sua constelação particular, saber se nasceu muito cedo para receber a luz da sua estrela ou se chegou ao mundo quando de há muito se extinguiu o astro que deveria iluminá-lo. No light, but rather darkness visible.
Chamamos de sombrias as criaturas que não recebem luz. Passam sob o sol, as estrelas, através das iluminações cambiantes da cidade, elevam-se a monumentos da terra, contemplam as criações humanas, cruzam por almas que pegam fogo, e não recebem a luz. Entre tais criaturas e a luz, um corpo opaco de vários nomes, duros e prosaicos. Rage, rage against the dying of light.
Sombra é ar preto. Ao meio-dia, e este é o meu tempo, a sombra se abraça a nós e se confunde conosco. A vida e a morte no mesmo corpo. O sol fulgura sobre a minha cabeça, o fim se aproxima de meus pés, ponto final de meu domínio, ponto de partida para a solidão. Continuamos a caminhar, e a sombra cresce de nossos pés à nossa frente, enquanto o sol, perdendo-se atrás, resplandece inútil em nossas costas opacas. O homem, disse um que partiu há vinte e cinco séculos, é o sonho de uma sombra.
Ontem vi uma menininha descobrindo a sua sombra. Ela parava de espanto, olhava com os olhos arregalados, tentava agarrar a sombra, andava mais um pouco, virava de repente para ver se o (seu) fantasma ainda a seguia. Era a representação dramática de próprio poema infantil de Robert Stevenson:

I have a little shadow that goes in and out with me,
And what can be the use of him is more than I can see.

Indo e vindo, seguindo, rodeando, saltando, gesticulando com os seus bracinhos ternos, tropeçando, caindo, levantando-se, murmurando sua surpresa, implorando por uma explicação impossível, a menina começou a dançar o ballet que vai chamar-se a (sua) vida.

CAMPOS, Paulo Mendes. Cisne de feltro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.97-98.
 

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Pearl Jam: Masters of War (Bob Dylan)

Murilo Mendes: Morrer: perder o texto, a palavra

TEXTO DE CONSULTA

1

A página branca indicará o discurso
Ou a supressão do discurso?

A página branca aumenta a coisa
Ou ainda diminui o mínimo?

O poema é o texto? O poeta?
O poema é o texto + o poeta?
O poema é o poeta – o texto?

O texto é contexto do poeta
Ou o poeta o contexto do texto?

O texto visível é o texto total
O antetexto o antitexto
Ou as ruínas do texto?
O texto abole
Cria
Ou restaura?

2

O texto deriva do operador do texto
Ou da coletividade – texto?
O texto é manipulado
Pelo operador (ótico)
Pelo operador (cirurgião)
Ou pelo ótico-cirugião?

O texto é dado
Ou dador?
O texto é objeto concreto
Abstrato
Ou concretoabstrato?

O texto quando escreve
Escreve
Ou foi escrito
Reescrito?
O texto será reescrito
Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico;
Pela roda do tempo?

Sofre o operador:
O tipógrafo trunca o texto.
Melhor mandar à oficina
O texto já truncado.

3

O texto é o micromenabó do poeta
Ou o poeta o macromenabó do texto?

4

A palavra nasce-me
fere-me
mata-me
coisa-me
ressuscita-me

5

Serviremos a metáfora?
Arquivaremos a?

Metáfora: instrumento máximo;
                                   CASSIRER.
A própria linguagem do homem.
                        ORTEGA Y GASSET
Invenção / translação.

6

A palavra cria o real?
O real cria a palavra?
Mas difícil de aferrar:
Realidade ou alucinação?

Ou será a realidade
Um conjunto de alucinações?

7

Existe o texto regional / nacional
Ou todo texto é universal?
Que relação do texto
Com os dedos? Com os dedos alheios?

Giro                 NÉ POUR D’ÉTERNELS
Com texto a tiracolo
                                  PARCHEMINS
Sem o texto
                                   (MALLARMÉ)
Não decifro o itinerário.

Toda palavra é adâmica:
Nomeia o homem
Que nomeia a palavra.

Querendo situar objetos
Construímos um elenco vertical.
Enumeração caótica?
Antes definição.
Catalogar, próprio do homem.

8

Morrer: perder o texto
Perder a palavra / o discurso

Morrer: perder o texto
Ser metido numa caixa
Com testo
Sem texto.

9

Juízo final do texto:
Serei julgado pela palavra
Do dador da palavra / do sopro / da chama.

O texto-coisa me espia
Com olho de outrem.

Talvez me condene ao ergástulo.

O juízo final
Começa em mim
Nos lindes da
Minha palavra.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994, p.737-740.

Ismael Nery: Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes, 1922 

Julio Cortázar: "o que não se conheceu é o que não se é"

Outra maneira de tentar explicar: Quando é isso, já não estou olhando para o mundo, de mim para o outro, mas por um segundo sou o mundo, o plano de fora, o demais me olhando. Vejo como os outros podem me ver. É inapreciável: por isso dura pouco. Meço a minha defectividade, apreendo tudo o que, por ausência ou defeito, nunca posso ser. Vejo o que não sou. Por exemplo (isto veio de uma outra coisa, mas sai por aqui): existem enormes zonas às quais nunca cheguei e o que não se conheceu é o que não se é. Ansiedade para começar a correr, entrar em casa, naquela loja, saltar de um trem em movimento, devorar todo Jouhandeau, saber alemão, conhecer Aurangabad... Exemplos localizados e lamentáveis, mas que podem dar uma ideia (uma ideia?).
Outra maneira é tentar dizê-lo: O defectivo se sente mais como uma pobreza intuitiva do que como uma mera falta de experiência. Na verdade, não me aflijo muito por não ter lido toda a obra de Jouhandeau, sinto no máximo a melancolia de uma vida demasiado curta para tantas bibliotecas etc. A falta de experiência é inevitável, quando leio Joyce estou sacrificando automaticamente outro livro e vice-versa etc. A sensação de falta é mais aguda em
É um pouco assim: há linhas de ar em volta da sua cabeça, do seu olhar,
zonas de detenção dos seus olhos, do seu olfato, do seu paladar,
ou seja, você anda com o seu limite por fora
e você não poderá ultrapassar esse limite quando pensar que apreendeu plenamente qualquer coisa, a coisa que é igual a um iceberg, tem um pedacinho por fora e o mostra, com todo o resto do seu volume bem para lá de seu limite e foi assim que o Titanic afundou. Heste Oliveira sempre com seus hexemplos.

CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.466-467. 

Bob Dylan (google instant)

Sebastião Uchoa Leite

PEQUENAS IDEIAS FIXAS

coisas limpas
de ar-condicionado sem pesadelos
escritos rasos
le mot juste
objetos diretos colocados
precisões
do ostinato rigore
lancetas bisturis agulhas
conceitos vermes
"la consciencia me sirve de gusano"
grafitti críticos
"somos o carnaval das multinacionais"
observações ao acaso
"um leão
é feito de carneiros devorados"
do poeta da ideia fixa
coisas secas
escritos de gravetos
greves
inscrições de w.c.
"uma coisa é certa
poeta de privada
vive inspirado na merda"


LEITE, Sebastião Uchoa. Ciranda de poesia. Org. Franklin Alves Dassie. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, p.66.

memória de algumas lutas

Tenho vivido coisas difíceis, angústias na largueza que a palavra angústia comporta ando angustiada demais,  meu amigo , diz a personagem feminina do conto "Os sobreviventes" palavrinha antiga essa, a velha angst. Tudo que cabe nesta palavra, que torna o caminhar mais difícil. Não sei em que crônica de Clarice ela falava que corria riscos, como todo mundo. Não, era correr perigo, numa formulação lapidar: “Corro perigo como toda pessoa que vive.” A adjetiva restritiva que vive não deixa dúvida quanto ao estreitíssimo vínculo entre a vida e o perigo. Se for assim, nunca vivi tanto. E por essa intensidade a palavra perigo se converte em risco. Custou muito chegar até aqui. Num dos trechos do percurso, um professor falou-nos sobre o conto “Os sobreviventes”, e jogou luz sobre o mofo. A hora da estrela termina enigmaticamente: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.” Os morangos estão mofados.

Caio Fernando Abreu. Morangos mofados. 9.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.19.
Clarice Lispector. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.56.
Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.87.

marcador para Rayuela

efeméride de hoje

O que se celebra hoje, no calendário cristão, é muito estranho. O Google foi discreto: não propôs nenhum doodle. Eu, católica extraviada há mais de duas décadas, exilada, de espiritualidade conturbada e confusa, deixo aqui a confissão de um pecado: recentemente, em momento de grande aflição, passando em frente a uma Igreja no centro do Rio e percebendo a missa, entrei expressa para o momento e a fila da comunhão, recebi na boca aquele misterioso disco branco de sabor indefinível, e saí em seguida.  

diz-me uma amiga ao telefone

Ainda uso esse instrumento prestes a enferrujar pela avalanche das redes sociais, o telefone. Pouco, mas uso. Para falar com pessoas amigas, por exemplo, ou completamente desconhecidas (atendentes de telemarketing). E foi ao telefone que ouvi uma coisa muito pertinente, de uma amiga: é preciso tomar cuidado para não ficar se repetindo, escrevendo sempre o mesmo texto. Já ouvi depoimentos de atores dizendo que se afastaram da teledramaturgia porque perceberam que lhes era reservado sempre o mesmo papel (e na televisão há casos notórios de múmias, pois incorporaram um papel e não vão mais sair dele, aliás nem querem). O perigo de se repetir é o engessamento. Então, quando minha amiga falou isso, eu ouvi com mais vagar, porque ser apenas um, um só personagem, é de um empobrecimento desolador. No extremo, é tornar-se atendente de telemarketing.

Milton Nascimento: San Vicente

Pablo Picasso

[imagem obtida aqui]

A Pablo Picasso, [devo] a reacomodação do nervo óptico.
 Paulo Mendes Campos, idem, p.18.

aos poetas de todos os tempos


Devo aos poetas de todos os tempos a sobrevivência de minha alma.

Paulo Mendes Campos. Cisne de feltro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.18.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Paulo Leminski: escrever à margem

Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.

Os melhores poemas de Paulo Leminski. 6.ed. São Paulo: Global, 2002, p.131.

Beatles

Não sou de escutar os Beatles, mas há duas músicas irresistíveis. 


livros: traços e tropeços deixados na memória

Recebo de Portugal, via Desertações, proposta de debate interessante. Senti-me instigada a repassar minha memória afetiva, os livros que em minha vida entraram. Aí vai.

1. Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?

Todos os livros de poesia que me acompanham ― além de Grande sertão: veredas A descoberta do mundo. De forma avulsa, há livros a que sempre estou retornando, em busca de uma narrativa, um parágrafo, uma iluminação. Por outro lado, há livros a que, não obstante fundamentais, não voltarei, simplesmente porque me feriram muito, ou então porque quero ler outros. No primeiro caso encontra-se A metamorfose, de Kafka, e no segundo Madame Bovary.

2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?

Sim. O vermelho e o negro. Jamais consegui levar a leitura adiante ― achei o livro chato. E o Ulisses eu quase dei conta, mas parei na madrugada, no monólogo da Molly.

3. Se escolhesses um livro para ler para o resto da tua vida, qual seria ele?

Esta pergunta é muito ingrata. Seria, certamente, algum livro de poesia. Mas há um livro que vou ler para o resto de minha vida, porque me foi fundamental: A carta ao pai, de Kafka. Posso nunca mais abrir um exemplar deste livro e mesmo assim continuarei lendo-o, de tal forma ele se entranhou em mim. 

4. Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?

Esta é a pergunta do pecado, do crime literário inafiançável. Então vou por outra via: todos os livros que desejei ler eu li, e isso me basta. Tenho dívidas literárias, que vou quitando conforme a disposição de ler o permita.

5. Que livro leste cuja 'cena final' jamais conseguiste esquecer?

Morte em Veneza, talvez por influência da versão cinematográfica (merece mesmo o link do youtube). Mas os finais de Guimarães Rosa, em especial aqueles de Primeiras estórias em diante, costumam me ser caros. E o final de O processo crava-se como uma lança na memória de quem lê.

6. Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?

Para esta resposta vou recorrer a Caetano Veloso, a música "Livros": quase não tínhamos livros em casa e a cidade não tinha livraria. Quando criança, lembro-me de ter ficado louca por um estojo que um vendedor passou lá em casa vendendo, cheio de coisinhas bonitas e tal, com um livro, Deus negro… Meu pai não comprou.

7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Por quê?

Em geral, quando acho um livro chato, a valer, abandono a leitura, mesmo sabendo que o livro é bom, obrigatório, imperdível e tal. Fiz certo esforço para ler A maçã no escuro, e gostei de O desconhecido e Mãos vazias, de Lúcio Cardoso.

8. Indica alguns dos teus livros preferidos.

Meus livros preferidos são escolhas afetivas, que dizem respeito a um percurso muito próprio: não valem como indicação. Há, entretanto, os imprescindíveis, como quis Bertold Brecht, mas não consigo fechá-los numa lista.

9. Que livro estás a ler neste momento?

O jogo da amarelinha (pelo menos tentando) e Cisne de feltro (Paulo Mendes Campos). E tudo o que eu tenho em casa de poesia, de maneira assistemática.

10. Indica dez amigos para o meme literário:

Só há uma pessoa, no momento, que me apraz indicar, o Luiz Carlos Lopes (Caderno de Caligrafia), porque tenho certa curiosidade em relação ao modo como ele responderia a essas perguntas, leitor privilegiado que é. E ele bem falou sobre isso em seu último post, sobre seus livros...