Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 19 de fevereiro de 2011

Yes - Owner of a Lonely Heart


[viver sem música é privar-se de si]

e por falar em beleza...

Veio um pequeno grupo de ex-alunos meus do 6º ano, agora no 7º, falar de saudades, perguntar se eu voltaria a dar aula para eles etc. Imprevisíveis. Muito simpáticos, não pareciam afetar um sentimento que não existia, mesmo porque criança não costuma perder tempo com isso, algo que, à medida que vão crescendo, lamentavelmente começa a acontecer. Que interesse poderiam ter em vir me falar algo dessa ordem? Nenhum, equivalendo aos alunos que nada vieram falar. Queriam falar, falaram. Me senti lisonjeada e contente ao ter meu valor reconhecido naquela roda de meninos (e algumas meninas) inteligentes, saudáveis, bonitos, sobretudo simpáticos e ainda com alguma coisa do frescor da infância. Porque era disso que se tratava, um afeto desinteressado, um modo de afetar e ser afetado que dizia respeito à experiência da sala de aula. Aí um deles disse uma coisa muito engraçada, como se dissesse de fato uma coisa evidente por si mesma, que não necessitasse de justificativa ou explicação mas fosse importante para o mundo funcionar: esse ano só tem professora feia. No mesmo instante eu devolvi: então quer dizer que eu era bonita?! Eles riram, e ficou por isso mesmo, cada um tomou seu rumo. Gostei de ouvir a indireta sutilmente sugerindo minha beleza? Sim, que mulher não gostaria? 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

qual o beatle / mais bonito...

Pergunta-me uma aluna hoje, diante desta foto que ilustrava seu caderno, qual beatle eu achava mais bonito.

Respondi Ringo Star, confundindo-o com o George Harrison (e não saberia dizer o que me levou a confundi-los). Escolhi Harrison em parte porque nesta foto ele me parece o único beatle alegre, genuinamente alegre (daí talvez a confusão, pois Ringo Star aparece com mais frequência risonho nas fotos), e em parte porque de fato estão neste páreo da beleza apenas ele e John Lennon. Ringo Star nunca me pareceu bonito, e Paul Mccartney traz até hoje a cara de menino. A aluna devolveu: por que não o Lennon?, sem eu falar nada disso. Não sei dizer por que o Lennon não seria o mais bonito: tratava-se de um homem bonito, sem dúvida, diria mesmo belo, mas George Harrison tinha os traços mais fortes, e muita coisa do Lennon foi construída pelo mito. Sem contar que isso tudo variava conforme eles, numa sintonia talvez estudada, adotavam cortes semelhantes de cabelo, e os cabelos longos favoreciam Harrison. Mas a minha confusão entre George Harrison e Ringo Star é meio patética, de forma que... essa postagem foi feita apenas por amor aos Beatles, e falar de coisas mais amenas e aparentemente desimportantes: qual o beatle / mais bonito...

PS: linda homenagem "in celebration of the 50th anniversary of George Harrison's classic solo album, All Things Must Pass is celebrated with a suite of new releases including a stunning new mix of the classic album by Grammy Award-winning mixer/engineer Paul Hicks, overseen by executive producer Dhani Harrison."

Claude Debussy: Clair de Lune

[este blog, um silêncio, um vazio...]

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A lua vem da Ásia (CCBB, com Chico Diaz)

[imagem obtida aqui]

A lua vem da Ásia, adaptação para o teatro do romance de Campos de Carvalho, é puro delírio verbal. Chico Diaz sustenta com força, perícia e precisão um monólogo de quase 90 minutos, e o que se vê não cabe no escaninho da lógica. Como tal, fica difícil falar da peça, embora alguns consigam (aqui). Não há bússola, a linguagem não comporta a riqueza e a intensidade do que é vivido, a liberdade é um clamor constante, a escrita uma possibilidade, e incomoda bastante perceber, como o avesso de uma fotografia, o mundo-nosso-de-cada-dia na ilogicidade(?) do que desfila ao longo da peça. Uma das poucas falas de que consigo me recordar: revelar ao mundo minha desesperada inocência. Ou: uma lágrima furtiva. Ou: nossa grande insignificância diante do universo. O inferno é aqui mesmo, mas é possível dar boas risadas diante de seu absurdo, principalmente quando este absurdo começa estranhamente a se impor como rotina. Ao sair do teatro, olhei para o céu casualmente e vi uma enorme lua (asiática, por força da peça). Caminhei mais um pouco e vi o que vejo todo dia, incorporado à rotina de uma cidade que compensa seu inferno oferecendo teatro de qualidade a preços populares no CCBB. A peça vale o inferno porque o encena, colocando em cena a perplexidade de um ser errante diante de um mundo que os deseja, os seres, adaptados, enquadrados, assimilados, rotinizados. E há, vivendo nas calçadas, iluminados pela mesma lua, seres pelos quais o teatro não pode fazer nada. 

Sinal Fechado - Paulinho da Viola


...e na interpretação antológica de Chico Buarque.

Thought Bubble (VFS)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

hoje na aula

Vai que me empolguei numa turma hoje... 6º ano. Nunca pensei que pudesse gostar tanto de trabalhar com esse público. Há alguma coisa de muito interessante nessa idade, um frescor inconfundível. Fui falar sobre linguagem, e aí tangenciei a questão da diferença entre o falar humano, a língua, e o que se chama de linguagem dos animais. Isso porque o 6º ano percorre vários tipos de narrativas com animais personificados. Então comecei a desenvolver um raciocínio que me levou a isso: a evolução da capacidade de emitir sons articulados a partir de grunhidos ancestrais foi algo que se fez contra as leis da biologia; então nossos ancestrais, ao assumirem a postura bípede, não só liberaram as mãos para as mais diferentes atividades como a própria postura bípede levou ao aguçamento da visão: dois fatores decisivos para o excepcional desenvolvimento alcançado pelo nosso cérebro, e a própria postura bípede, junto a esses outros fatores, colocou os ancestrais do homem (já seria o homem?) frente a frente, de forma que o desenvolvimento da linguagem se impôs. Aí eu disse que nós tínhamos conquistado muito: as mãos, a visão, o excepcional desenvolvimento do cérebro e a capacidade de emitir sons articulados que fazem sentido, e que isso era muito precioso, um tesouro a nosso dispor. Enquanto falava, acreditava muito no que dizia (apesar do componente de ficção/imaginação em torno da evolução biológica do homem), como se dissesse: olhem a riqueza que vocês têm, que nós temos: nós temos a linguagem (e concomitantemente levava a mão à garganta, como se ali estivesse a "fonte" da linguagem). Mas usamos isso também para o mal: nós usamos mal o que temos de bom, eu disse. Eu queria dizer que eles tinham em mãos algo muito precioso, mas falava isso para mim também.

e aquela música levou-me ao infinito... [Carpet Crawlers - Genesis]

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

compasso de espera

Como uma imposição repentina ao pensamento, me dou conta de que falta apenas uma semana para a defesa. Não poderei mais estar tranquila enquanto tudo isso não passar. E há o trabalho, as obrigações, o trânsito e o calor do Rio de Janeiro, os compromissos, o teatro saindo de cartaz. Coração pesado, opresso, como se de repente fosse difícil respirar. A minha defesa de dissertação foi um dia de alegria tão intensa que eu mal dormi na noite que se seguiu. De onde veio aquela felicidade eu não sei, mas me parece que ela foi única, pois outro era o momento. Acho que é isso que começa a me perturbar, a intensidade do que se aproxima. Ironicamente, falei de ficção e cegueira num primeiro de abril. Agora falarei de coisas bem mais difíceis (para mim) num dia que está com todo jeito de dia da verdade

Alice e o Gato de Cheshire

[imagem obtida aqui]

Ao ver Alice, o Gato só sorriu. Parecia amigável, ela pensou; ainda assim, tinha garras muito longas e um número enorme de dentes, de modo que achou que devia tratá-lo com respeito.
“Bichano de Cheshire”, começou, muito tímida, pois não estava nada certa de que esse nome iria agradá-lo; mas ele só abriu um pouco mais o sorriso. “Bom, até agora ele está satisfeito”, pensou e continuou: “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?”
“Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato.
“Não me importa muito para onde”, disse Alice.
“Então não importa que caminho tome”, disse o Gato.
“Contanto que eu chegue a algum lugar”, Alice acrescentou à guisa de explicação.
“Oh, isso certamente você vai conseguir”, afirmou o Gato, “desde que ande o bastante.”

CARROL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Ilustrações originais de John Tenniel. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 79-77.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Arnaldo Antunes - Loooooooooooooooooooooonge!

saúde psíquica

Uma amiga faz-me um grande favor. Escrevi-lhe perguntando por sua saúde e ela respondeu sucintamente, acrescentando que estava meio de mau humor. Achei formidável: o direito ao mau humor. Respondi-lhe um pouco depois que ela tinha me dado uma ótima ideia: eu nunca me permiti dizer: hoje não, estou de mau humor. Até esse dia. Há outras coisas, no entanto, que me permito amiúde. Não, isso aqui não é uma ilha ornada por um belo par de olhos azuis.

Emily Dickinson: Things are not what they are ―

Quem quer que desiluda
Uma só Alma Humana
Por erro ou irreverência
Todo o mal pagará.

Como o Pássaro ingênuo
Como a vívida Estrela
Até a indicação sinistra
Nada é o que é ―


Whoever disenchants
A single Human soul
By failure or irreverence
Is guilty of the whole.

As guileless as a Bird
As graphic as a Star
Till the suggestion sinister
Things are not what they are ―

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.60-61.

poesia

A busca por um "poema visual sobre o mar" aportou aqui. 

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Anselm Kiefer, The Book (1979-1985)


É sempre com espanto que o acaso conduz à descoberta de um artista que não se conhecia: Anselm Kiefer (aqui e aqui). Este post é apenas um registro para não perdê-lo de vista. Imagem obtida aqui.  

Beatles - Across the Universe (animação)

O Brasil é aqui


Recebo por e-mail matéria desoladora sobre a atual condição da educação pública oferecida pelo município do Rio de Janeiro, publicada na edição de fevereiro da revista Piauí (só para assinantes). Destaco o trecho: "O Brasil ocupa o 53º lugar no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Alunos, que testou 65 países em 2009. E o Rio de Janeiro chegou em penúltimo entre os estados brasileiros no Ideb, à frente do Piauí e empatado com Alagoas, Amapá e Rio Grande do Norte." O texto do e-mail advertia para o conteúdo bombástico: "Mesmo conhecendo a situação de nossas escolas (e de nossa educação), tenho de confessar que a matéria anexa (da PIAUÍ deste mês) me causou mal-estar. A realidade é outra?"

meu orientador acumulando papeis

"Na sequência, vou te mandar duas fotos, antes e depois da defesa da tese, ok?"

[o dia anterior à defesa]

[o dia seguinte à defesa]