Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 14 de agosto de 2010

antes do anoitecer


Before Night Falls, ou Antes do Anoitecer (Julian Schnabel, EUA, 2000) é a sensível biografia, seguida mais ou menos linearmente, do escritor cubano Reinaldo Arenas, interpretado com requinte por Javier Bardem. O enredo gira em torno do desejo de se tornar escritor por parte de Arenas, que advém de uma infância paupérrima, e a luta que trava para conseguir êxito. As coisas parecem caminhar mais ou menos a contento, até que o regime cubano resolve mostrar uma face bastante cruel, passando a perseguir os homossexuais e os que criticam o regime  Reinaldo acaba preso e torturado. O título do filme, que é de seu último livro, no qual se baseia, alude metaforicamente a esta circunstância  escrever na condição de prisioneiro  mas também anuncia o fim próximo (segue aqui um comentário do livro). Além de Javier Bardem, merece destaque a atuação de Johnny Depp. Um trecho de Celso Sabadin, publicado no Cineclick: “Antes de mais nada, vale a advertência: vá ao cinema preparado. O filme, em várias cenas, é um soco no estômago. Nem poderia ser diferente. Afinal, a história fala da trajetória de um homem que teve de lutar contra todos os tipos de preconceitos para conseguir ver sua arte publicada e difundida pelo mundo. Arenas batalhou contra os preconceitos sociais, políticos, sexuais e humanos, lutou contra todo o tipo de intolerância e comeu o pão que Fidel Castro amassou, tudo em nome da liberdade de expressão.

fundo do mar

Fundo do Mar - Acrílico 1,20 x 95 - Roberto Vivas

bob dylan... just like a woman

Sem perceber, fui me tornando uma dyleana, uma amante do Bob Dylan. Foi acontecendo muito aos poucos. Lembro-me do primeiro CD, Time Out Of Mind (1997), adquirido há coisa de 10 anos atrás, numa loja em liquidação - comprei dois de vez, ambos foram parar em mãos alheias, e só recentemente recuperei um deles. Até onde eu sei, esse CD, atualmente, só importado. No entanto, opiniões mais autorizadas afirmam que é uma das melhores coisas que o Dylan já fez (segue um breve comentário que encontrei num blog). Quer dizer, eu travei contato com o Dylan pela sua face mais sombria, mas de uma poesia e beleza espantosas. O disco agradou à crítica, entrou em rankings, angariou três grammy awards, incluindo álbum do ano (outros dados no site oficial do cantor). Vou me servir das palavras de um amigo: "Sobre as coisas que mais amo e as pessoas que mais bem me fazem, delas, pouco sei falar, sempre falho, fracasso, elas estão próximas do indizível." Não saberia dizer de que forma se intensificou minha relação de amor com Bob Dylan, mas dois fatores certamente entraram em cena: a vinda para o Rio de Janeiro associada a um emprego estável, que me deu tempo, dinheiro (pouco, diga-se) e certa tranquilidade para fazer as coisas que gosto; a própria experiência do blog. De forma que, "de repente", começou uma avalanche de filmes, vídeos, DVDs, CDs, posts e até mesmo um livro. Isso tudo sem pressa, um amor dilatado, uma paixão esfuziante. Mas o lance é esse: Bob Dylan une duas coisas que amo muito e me fazem bem: música e poesia. Então nunca cansa, é sempre um prazer renovado ouvi-lo... pois, como é comum se escutar por aí, como um cara com uma voz tendendo ao fanhoso, um visual mais para o desarrumado, um ar meio blasé conseguiu firmar-se no universo da música? Só ouvindo para entender.

Tomo a liberdade de reproduzir aqui um poema de uma internauta amiga que me encantou, cujo blog constitui um atrativo à parte - Barbaridades (link aqui). O poema se intitula "Tagarelaço", e traduz com adorável (im)precisão o titubeio entre dizer e não dizer. Amei. Parabéns, Bárbara!  

Tagarelaço

Se eu desdigo o que eu disse, já não digo.
Se eu redigo o que eu disse, digo e repito.
Completo meu disse-desdisse com um dizer que desde já será desdito:
De que vale o dizer arrependido se o silêncio medroso é recolhido e se torna
um deixar de dizer maldito?
Digo, sempre direi.

novela vaga

Ótimo o curta Novela Vaga, disponível no Porta-Curtas. Trata-se de uma brincadeira com certo cinema cult que, a despeito da aura de cinema de arte, esquece-se do público. Na geleia geral em que se converteu a pós-modernidade, com esse ar de pós-tudo, é às vezes difícil separar o cinema de qualidade daquele... bem, nem sempre a gente tem a boa sorte de estar com os neurônios a postos para apreciar devidamente uma obra de arte.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A ESTALAGEM DA RAZÃO

A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Org. Richard Zenith. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006, p.191.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Manuel Bandeira

Teresa

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do
[corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 136.