Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 31 de julho de 2010

Cecília Meireles

Canção Excêntrica

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída
em vez de abrir um compasso,
projeto-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
― saudosa do que não faço
― do que faço, arrependida.

MEIRELES, Cecília. Antologia poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Torquato Neto: "quem não se arrisca não pode berrar"

PESSOAL INTRANSFERÍVEL

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.

Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, ‘herdeiro’ da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.

E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.
14/9/71 ― 3ª feira

Torquato Neto. Os últimos dias de paupéria. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. Max Limonad, 1982, p. 63.

"pessoal intransferível"

Rodando pela blogosfera, encontramos uma diversidade incrível de blogs - há uma proliferação deles. E aí me ocorreu uma questão: por que as pessoas estão escrevendo tanto, não importa o quê? Bem, a tirar por mim, por pura necessidade. Esse blog começou bem "amador", conforme se pode perceber pelos primeiros posts. De certa forma, continua sendo. Quando uma outra amiga disse que tinha procurado em vão um texto que postei, resolvi que estava na hora de introduzir os tais "marcadores". Trabalheira danada ir fazendo um percurso retroativo, rever textos, ver quais seriam os signos que poderiam melhor caracterizá-los. Muita coisa foi revista e descartada nessa operação - numa palavra, eu não era mais a mesma, e esse é o perigo que ronda qualquer revisão - algumas coisas ficaram  inaceitáveis, mas outras permaneceram intocadas, e nelas eu continuo reconhecendo a legitimidade do processo que me moveu (e me move) a escrever. Mas o mais curioso, na história dos marcadores, foi que havia posts para os quais eu não encontrava um signo palpável, evidente por si. Comecei a pensar em algo como "inclassificável", mas marcadores não são uma classificação. Foi aí que me ocorreu a famosa expressão do poeta Torquato Neto, "pessoal intransferível": aqueles posts eram (são) inegociáveis, eram a expressão de experiências muito próprias, muito minhas, e por mais que eu receasse (como continuo receando) me expor, eles eram imprescindíveis. Eram a própria justificativa do blog existir. É com uma entrega para a escrita que tento me colocar nesse espaço. Algumas coisas que escrevi me fizeram muito bem. É o que importa.


de tanto significar a coisa vai ficando insignificante

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Manuel Bandeira

Nova poética

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada,
[e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe
[o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por
[cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 205.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Luiz Olavo Fontes

Cegueira

desgarrado rasgo
com meu pistom
a névoa


***

tenho vontade de ver
as coisas como realmente são
mas só consigo ver
através de meus olhos

In: HOLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). 26 poetas hoje. 6. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007, p. 167.

Cacaso

Vida e Obra

você sabe o que Kant dizia?
que se desse tudo certo no meio também
daria no fim dependendo da ideia que se
fizesse de começo
e depois ― para ilustrar ― saiu dançando um
foxtrote

HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007, p.42.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Emily Dickinson: "A gangue dentro da alma"

A gangue dentro da alma
A polícia não prende
O que de início era tumulto
É dado como paz

Sem cenário acertado
Ou som suficiente
Mas tal um furacão surgindo
Em um solo ideal.


The mob whthin the heart
Police cannot suppress
The riot given at the first
Is authorized as peace

Uncertified of scene
Or signified of sound
But growing like a hurricane
In a congenial ground.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 142-143.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Emily Dickinson

O Paraíso é uma escolha.
Os que querem terão
Lugar no Éden não obstante
O Exílio de Adão.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 197.

matéria vertente

Há certos acidentes pessoais que a gente absolutamente não entende, e mesmo lamenta. No entanto, na economia de alguma coisa que nem sempre se alcança apreender, eles estão cumprindo um papel, que a palavra "aprendizado" não dá conta. O que acontece é algo mais profundo: é como se o ser fosse reconfigurado, e uma nova disposição para a vida surgisse. Isso às vezes assusta, pois dá trabalho se reconhecer nessa nova configuração. O tempo aí entra como uma estranha matéria da tessitura fina e delicada do viver: ele age nos fazendo constantemente outros, mas não comporta um movimento linear. É precioso o que se tem em mãos - e que transformamos, por uma simplificação que cotidianamente nos obriga a uma esquematização ("dorme", "acorda", "levanta"), transformamos no que se chama vida. O que se tem em mãos é muito mais, e não conheço expressão melhor que aquela de Guimarães Rosa - "matéria vertente". Um amigo filósofo dizia se espantar com a crônica "Uma esperança", da Clarice Lispector, e que é o próprio paradoxo do marcador deste post: "pessoal intransferível". Ela está falando de uma coisa muito íntima, e no entanto a gente se reconhece naquela experiência, ou na escrita daquela experiência - não parece possível separar uma coisa da outra. Ali a matéria vertente é o próprio inseto que de repente pousa, movendo signos e pessoas ao seu redor pelo potencial metafórico que encerra - mas é também o olhar que reconhece, no inseto, a metáfora - "lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser". Quem, depois de conhecer essa crônica, pode ficar imune à presença de uma esperança? Ainda mais se o insetinho aparecer de manhã bem cedo, num dia cheio de promessas. 

domingo, 25 de julho de 2010

Drummond - o observador no escritório

Janeiro, 22 [1951] - Tarde de chuva fina, no centro. Junto à livraria, observo minuciosamente as ruínas do tempo, que me sorriem. Para não sofrer com o espetáculo, preferia fechar os olhos. Eles, porém, inspecionam por conta própria, máquina fotográfica a funcionar independente de mim. Chove no passado, chove na memória. O tempo é o mais cruel dos escultores, e trabalha no barro.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Rio de Janeiro: Record, 1985, p. 97.